O livro das horas de Catherine of Cleeves
Tempus Fugit avisa que minha filha faz, em poucas semanas, 15 anos. Simone estava certa e ela vem se tornando. Eu a amo mais hoje do que amei até agora. Amo os pedaços da minha mãe que grudaram nela. Vejo nitidamente, quando ela dorme, a zona entre o nariz e a boca, que ela é minha filha e que eu sou filha também, ainda que a palavra “mãe” tenha saído de moda pra mim. Gosto do jeito capricorniano de ser da minha menina que tem tanta paciência com a menina que eu sou. Vejo a inteligência dela e nem acredito. O senso de humor é, definitivamente, inglês e vem em pinceladas raras. Quando acontecem são secas e cirúrgicas. “Meu Deus, que coisa mais engraçada, e ainda assim não consigo gargalhar”, eu disse a ela um dia. Uma fineza de humor. Também amo meu filho. Amo profundamente o meu filho. É só que ela faz 15 anos e eu me lembro dos meus 15 anos tão nitidamente que chego a sentir a mesma febre que tomou conta do meu corpo no dia da festa, quase estragando os planos da mãe que tinha comprado queijos vindos de longe pra celebrar uma festa que, tudo bem, era pra ela.
f r a g m e n t o
Este texto não tem linha, mas tem fragmentos. Queria falar de um filme, Maestro. Vi ontem. Claro, bela maquiagem, figurino, etc e tal. O papel da mulher por trás de um homem que se tornou famoso, artista, sim, já vimos esse filme. A mulher por trás do homem gay é que acho interessante. Quantas gaiolas são necessárias para prender o tempo? E ele escorre, desobediente. A cena mais importante, pra mim, foi, logo antes de acabar, a de dois homens, um jovem e um velho, dançando ao som de Tears for Fears numa boate. Um filme que começa décadas antes de eu nascer, culmina pra mim com um velho dançando a mesma música que eu, adolescente e aos 15 anos, dançava. E ali, a grande interseção. Nosso brevíssimo encontro. Eu entro, ele sai. Let it all out. Shout. Shout. Let it all out. Quantas gaiolas são necessárias para prender o tempo?
f r a g m e n t o
O livro das horas era uma espécie de diário e pensamentos. Tinha cunho religioso e as mulheres alfabetizadas da Idade Média, guardavam aquilo como tesouros. Alguns era bordados a ouro. Perto da minha casa há, de um lado, a casa que foi de Catarina de Aragão. Do outro, a casa que foi de Ana Bolena. As duas foram mulheres do Henrique VIII, o mesmo que criou a Igreja Anglicana. Ele dizia, pela proximidade das casas, que anoitecia com Catarina e amanhecia com Ana. As duas tiveram Livros das Horas. E porque eram livros com orações, foram encontrados ali, em contrabando, os bilhetes do rei para uma e para a outra. Textos praticamente iguais e onde estava expresso que era, cada uma, a única. A única do homem que se casou seis vezes. O amor flerta com a gaiola.
f r a g m e n t o
Outro dia, estava lendo o jornal. Nele a história de Lucy, uma mulher que tem um câncer. Uma mulher gorda que tem um câncer. De tudo, ela disse: o corpo que eu passei a vida odiando está, finalmente, morrendo. A gaiola quer prender o tempo e o corpo. Não há saída nem para o tempo e nem para o corpo. Curiosamente o que fica é a gaiola, essa insistente.
f r a g m e n t o
Traduzi um livro cintilante. Vocês vão ver. Sai ano que vem e se chama Depois de Safo. Foi esse o nome que dei. Emocionada e com uma desculpa boba e fingindo dúvida, (que às vezes são verdadeiras) escrevi para a autora. No dia seguinte, um email dela, fresco, não lido. Apertei a tecla. Ela que escreveu tudo aquilo e me fez conhecer tanta gente, inclusive Sibilla Aleramo, estava falando comigo. Artistas são deusas. Têm um tempo suspenso. São livres.
f r a g m e n t o
Em janeiro, acompanho 10 pessoas que começam a escrever seus livros. Estarei com elas. Como Sibilla Aleramo fala de Safo: estarei perto delas, na beira do penhasco. Se elas se jogarem, que seja mesmo para morrer. Arte é risco.
f r a g m e n to
Vi um filme boliviano: Utama. Bonito. Um casal indígena na sua miséria do esquecimento político. Homem e mulher são velhos e vivem a seca, não chega água na aldeia deles. Durante a maior parte do tempo, os dois permanecem vivos. Quando ele morre, percebemos que falta um som na tela: era a respiração asmática dele e com a qual nos acostumamos. É espantoso como nos acostumamos com uma injustiça qualquer.
Desculpa o spoiler. Mas, para ser sincera, a primeira fala em Romeu e Julieta é do coro que avisa que o casal de jovens amantes vai morrer. Quando vi o filme de Zeffirelli, eu tinha 15 anos. Quantas gaiolas são necessárias para prender o tempo?
Feliz Natal!
Feliz Natal 🧑🏼🎄